sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Os últimos momentos da vida de um peregrino

Os momentos finais da vida do eremita João Maria de Agostini. 

"Sua respiração está difícil. O peito e a cabeça apresentam contusões profundas. Segura firme um crucifixo em sua mão direita. Estirado ao chão, de bruços, puxa o ar que teima em não encher seus pulmões. A cada tentativa, a terra entra pela boca misturada com sangue.

Será meu este sangue?, pensa.

Tenta levantar-se e não consegue. Quer mexer os braços, as pernas. Nada. Agora tem certeza. É seu próprio sangue que corre pela nuca e inunda a terra que entra pela boca. Apesar da agonia, ainda pode ver. Enxerga alguns arbustos e pedras, mas são dois animais que chamam sua atenção.

Paisagem onde se passa a morte do eremita. Sul do Novo México (EUA)

O dorso da serpente brilha, e para ela vai sua atenção. Sabe de quem se trata, pois passou a vida também pregando em Seu nome. Rastejando, ela se aproxima e sussurra:

O teu orgulho te trouxe até aqui. Veja o resultado! Deverias saber como Eu trato os arrogantes, homem vaidoso! 

Antes de tentar balbuciar algo, seus ouvidos captam outras vozes. Conhece-as e entende o que dizem. Galopes fazem o chão tremer e a poeira levantar, e parecem se afastar. Tenta chamá-los, mas engasga com a terra e o sangue. O sol desponta entre as montanhas. O único som que escuta agora é o vento, que lhe traz lembranças. Fecha os olhos e vê a vida cruzar diante de si. Sente remorso, medo. Com muita dificuldade, implora:

Deus misericordioso, perdoai-me!

Após breve instante, a víbora brilhante se afasta e o coelho se materializa, dizendo:

Aceito o teu sacrifício e arrependimento. Venha comigo, filho!

Instantaneamente, a agonia passa. Não há mais ardência no peito nem latejar da cabeça. Agora é o silêncio. E no silêncio, a lucidez. Enfim, compreende: a promessa estava paga!"

Perguntas: Quem representam a serpente e o coelho? Qual era a promessa que naquele instante estava paga?

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A primeira biografia do monge João Maria

    Muito antes do que se poderia imaginar, um escritor anônimo divulgava, no jornal O Mercantil, em 16 de abril de 1851, o já extenso percurso do italiano João Maria de Agostini. E escreveu com uma riqueza de detalhes que só quem teve proximidade ao monge poderia ter feito. O artigo inicia sob o título: “O Monge do Cubatão”. Acompanhemos, assim, o roteiro do “admirável peregrino” segundo esse autor anônimo.

Serra Geral, São Paulo

   
 [O monge João Maria de Agostini] Fez sete anos de penitência nas partes mais desertas da Itália, e depois partiu de Roma para a Suíça, e peregrinou pela Germânia, Inglaterra, França, Espanha e Portugal. Da cidade de Nantes [França], embarcou no grande mar oceano [Atlântico], e desembarcou no primeiro ponto da América meridional, porto da cidade de Caracas. Dalí, com um saco de livros as costas, passou por horríveis, medonhos e desertos lugares, por entre feras e bugres, e caudalosos rios até Santa Fé de Bogotá, Popayán, Quito e o altíssimo [Vulcão] Chimborazo, as grandes Cordilheiras dos Andes, Guayaquil, de onde embarcou para o Peru, e passou por grandes áreas até Lima, e no seio destes medonhos desertos passou muitos anos.

    O trajeto dele do Peru ao Brasil, segundo este mesmo texto, incluiu navegação pelo “grande Rio Amazonas” até chegar a Tabatinga, já em solo brasileiro. Continuou por Pernambuco e alcançou o Rio de Janeiro. Após, moveu-se pelas cidades de Santos e São Paulo, “visitando muitos lugares até chegar ao Rio Grande do Sul, passando-se para Buenos Aires”. O anônimo autor também informa o modo como o monge viajava, bem como seus afazeres nesta jornada: “andando por mar e por terra em um sem número de léguas (...) e fazendo por meio de pregações, restaurar muitos altares, cruzes e capelas tanto na Itália como no Brasil e Peru.” E o autor conclui: “Este monge, maravilha do nosso século, não é prezado a pessoa alguma; vive de seu próprio suor, prega quando lhe mandam e, quando sai do deserto ou de outro lugar, não pede comida nem pousada; se lhe oferecem, recebe. (...) A regra deste venerado monge são as orações, as meditações, trabalhos, contínuo silêncio e jejuns.
    
    O autor informa que, em abril de 1851, o monge habitava a Serra de Cubatão, próximo a Santos. Este é um dado que ainda carece de esclarecimentos. O que se sabe é que, em 24 de dezembro deste mesmo ano de 1851, Agostini apareceu em São Borja, no Rio Grande do Sul, fazendo o sermão de Natal na igreja matriz da cidade. Se o autor anônimo não se enganou, o que estaria fazendo Agostini na Serra Geral paulista em abril de 1851? Vejamos uma possível resposta tendo como base as minhas próprias pesquisas e os documentos de viagem do monge que foram publicados em dois artigos de 1970, escritos pelo pesquisador italiano Flório Santini.

    João Maria de Agostini esteve no Rio de Janeiro em maio de 1849. Após deixar a cidade, tomou o rumo da Serra dos Órgãos, região montanhosa e onde se construía a Imperial cidade de Petrópolis. Inquieto e dono de uma energia sem igual, seguiu até a região mineira de Ouro Preto e Mariana, passando pelo igualmente majestoso Pico do Itacolomi. A seguir, rumou para a fazenda Monte Alto, cujo diretor Pedro de Almeida o autorizou, em julho de 1850, a ali permanecer algum tempo. E aqui nos deparamos com nova dúvida: qual local exato desta “fazenda Monte Alto”? Em Minas Gerais, São Paulo ou região serrana do Rio de Janeiro? O que parece certo é que foi em área cafeeira que Agostini ficou alguns meses daquele ano de 1850.

Pico do Itacolomi, MG


    O monge declarou ao diretor da fazenda que estava esperando um “certo Pedro Amado” trazer-lhe, da capital São Paulo, livros de orações e bíblias que seriam usados para trocar por mantimentos ou mesmo para negócio, já que o monge declarara “não gostar de pedir esmolas”. Agostini aguardou algum tempo a chegada de seus livros, permanecendo em uma caverna da região. Talvez Pedro Amado tenha se atrasado e o monge, impaciente, não quis esperá-lo. Em 20 de outubro de 1850, Agostini deixa a fazenda Monte Alto sem os livros, tomando caminho incerto. É neste momento que ele pode ter ido para São Paulo em busca das encomendas, estabelecendo-se, depois, na Serra Geral de Cubatão, próximo a Santos. Porém, estamos no campo das incertezas, e é isso que torna fascinante perseguir a trajetória deste peregrino italiano. Quando se descobre algo inédito, sempre surgem novas perguntas.

Estrada velha de Santos


    O anônimo autor do texto do jornal talvez tenha sido o próprio Pedro Amado, o sujeito que ficou responsável em levar para o monge os livros de oração e bíblias na fazenda Monte Alto. O que fica evidente é que a pessoa que redigiu o artigo do jornal conhecia muito bem a rota percorrida até então pelo italiano, certamente tendo ouvido do próprio tal itinerário.

    A pequena biografia escrita em abril de 1851 a respeito do monge “maravilha do nosso século” foi a primeira tentativa de divulgar publicamente o grandioso percurso de “um verdadeiro servo de Deus” que peregrinava por longínquas terras pregando o Evangelho. Dez anos depois, em Havana, Cuba, um fotógrafo irá tirar um retrato do monge nomeando-o como “A Maravilha do Nosso Século”, convertendo a foto em souvenir a ser vendido. Em 2019, um século e meio depois, um documentário produzido pela Plural Filmes também se rendeu à figura sem igual do monge, intitulando o trabalho “A Maravilha do Século”. Quem sou eu para questionar tais escolhas?

terça-feira, 28 de julho de 2020

Quando os militares ouviam a ciência


Em visita às aldeias indígenas do norte do Rio Grande do Sul no ano de 1848, o militar José Joaquim de Andrade Neves constatou que uma terrível enfermidade acometia os índios: a elefantíase. O aspecto da doença e as mortes estavam causando pavor aos outros índios que já abandonavam as aldeias indo refugiar-se nas matas em busca de seus próprios métodos de sanar tão medonha enfermidade.

Hoje sabemos que a elefantíase (filariose) é transmitida por mosquitos infectados por um parasita chamado Wuchereria bancrofti. Naquela época, contudo, os índios acreditavam em algum mal contagioso, que passava de pessoa para pessoa, ou mesmo em punição sobrenatural. Diante dessa situação, Andrade Neves encontrou uma solução para o caso: “parece-me acertado que estes enfermos fossem auxiliados com sustento e transporte e levados às águas minerais de Santa Maria da Boca do Monte, onde consta que iguais doentes têm melhorado.” Popularmente, tais águas eram chamadas de "águas do monge", assunto que já tratei aquiaqui e aqui.

Em resposta, o governo sul-rio-grandense (cargo ocupado por outro militar) argumentou que não havia comprovação que as águas curassem elefantíase ou qualquer doença, portanto, não investiria recursos públicos para transporte dos índios enfermos.

O general Francisco José de Souza Soares de Andrea não queria alimentar a crença popular patrocinando o transporte de doentes à Santa Maria da Boca do Monte. Sua decisão se pautava nos pareceres científicos dos médicos que haviam negado quaisquer princípios medicinais às águas.

Aquela era uma época em que militares que ocupavam cargos públicos estavam aprendendo a ouvir a ciência.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Para quem acredita em milagre, a ciência não ajuda muito.

Em um mundo não muito distante de nós, mas em outro tempo, aconteceu um caso interessante. Milhares de pessoas passaram a se encaminhar para um local onde brotava uma água “milagrosa”, que curava todo tipo de doença. Tal água nascia de uma fonte “abençoada” que já havia operado a salvação de vários doentes, diziam os comentários. As notícias corriam céleres, de boca em boca, fazendo com que tal fonte virasse um verdadeiro centro de peregrinação. A aglomeração chamou a atenção das autoridades, dos jornalistas e dos cientistas.


Fonte de água "milagrosa", no Cerro do Botucaraí, Candelária/RS

Dois médicos, que também eram químicos, realizaram testes com essa água, concluindo que ela era unicamente potável. Porém, de pouco adiantou a propaganda do governo e dos jornais denunciando o charlatanismo e a impostura daqueles que ainda apregoavam a cura pelo uso da água, pois o povo continuou a afluir à fonte, acreditando no milagre.

Paralisias, cegueira, doenças de pele, ossos quebrados, problemas respiratórios, dores abdominais, de ouvido, de garganta, e até infertilidade feminina...tudo se curava pelo uso da dita água “santa”. Se fosse hoje, talvez também existissem alguns propagandeando que a ingestão da água curasse parasitas, vermes e vírus. Afinal, mesmo sem comprovação científica de sua eficácia, mal não faria tomar alguns goles do abençoado líquido. Ao menos era água potável.

Nota do autor: esse caso é verídico, e aconteceu em 1848 nos Cerros do Campestre (Santa Maria) e do Botucaraí (hoje no município de Candelária). Era a época em que a ciência iniciava sua luta para desacreditar certas crendices populares. Pelo visto a luta continua...