sábado, 7 de janeiro de 2023

Escritos perdidos: o massacre dos Mucker e o direito à memória

    Abro espaço neste Blog para apresentar uma resenha que fiz do livro "Escritos perdidos", de autoria de João Biehl e Miquéias Mügge, recentemente lançado pela Editora OIKOS. Como historiador público que pretendo ser e imbuído de espírito crítico que me incomoda há tempos, estou interessado em divulgar pesquisas sérias feitas por profissionais capacitados. Além disso, sou cidadão que fica indignado quando se depara com injustiças. E uma delas ocorreu há quase 150 anos, com colonos alemães envolvidos em uma trama nefasta capitaneada por jornalistas germanistas e concidadãos movidos por ressentimentos e desejos de vingança. Ao término da leitura do fantástico livro de Biehl e Mügge, tomei a firme decisão de divulgar tal pesquisa, aliando-me a eles na tarefa de tentar reparar um erro histórico. E ainda, mostrar aos descendentes dos colonos Mucker que eles têm direito à verdade e a uma memória digna. Caso alguém queira debater sobre o episódio Mucker, sobre o livro ou a resenha que segue, favor entrar em contato. Boa leitura!

“Escritos perdidos, vida e obra de um imigrante insurgente – Johann Georg Klein (1822-1915)”, de João Biehl e Miquéias Mügge, São Leopoldo: OIKOS, 2022. 486 p.


Um manuscrito perdido é o ponto de partida de uma pesquisa minuciosa feita pelos professores doutores João Biehl e Miquéias Mügge, em livro intitulado “Escritos perdidos”, que narra a vida e a obra de um imigrante germânico chamado Johann Georg Klein (1822-1915). O livro é dividido em quatro capítulos, com um prólogo e um epílogo que não podem ser confundidos com introdução e conclusão. O manuscrito de Johann Georg Klein – Vom Katechismus, perdido por mais de um século e que estava de posse dos descendentes do historiador Leopoldo Petry, está traduzido e transcrito na íntegra na segunda metade do livro. Nas páginas finais, um conjunto de cartas escritas pelo personagem e por ele redigidas em nome da líder Mucker Jacobina Mentz Maurer e de sua irmã Carolina Mentz. A obra ainda é repleta de mapas, fotografias, litografias, reprodução de cartas, trazendo qualidade e informação ao texto muito bem construído.

O manuscrito é um tratado teológico luterano feito pelo então adolescente Johann Georg Klein – ou João Jorge Klein, para facilitar nosso entendimento – quando ainda estava na Prússia Renana e tinha apenas 16 anos, ou seja, escrito em 1838. Tal manuscrito teológico luterano, de feições populares, denominado Vom Katechismus, foi, durante algum tempo, considerado o “catecismo dos Mucker”. Tal livro foi trazido por João Jorge Klein ao Brasil, guardado com zelo até o final da vida para, sem seguida, ser repassado pelos filhos ao historiador acima citado, Leopoldo Petry, para que o publicasse. Um verdadeiro “livro transatlântico”, segundo palavras de Biehl e Mügge.

O texto do jovem João Jorge Klein de fato revela que ele “defendia ideias de cunho petista e valorizava a participação leiga na comunidade...” (Biehl; Mügge, p. 17). O pietismo alemão veio com o grupo que chegou ao sul do Brasil no início da imigração, na década de 1820, e pode explicar, em parte, o que motivou a família Mentz/Maurer a iniciar o movimento de separação total com os demais grupos luteranos das colônias germânicas do sul do Brasil. Porém, o que me provocou a escrever esta resenha não foi tanto o tratado teológico do jovem João Jorge Klein – por sinal, interessante em vários sentidos e que exige um estudo mais demorado e atento –, mas a confirmação de uma ideia que sustento há tempos, qual seja: para compreendermos a fundo um movimento religioso é preciso, antes, entender as lógicas e dinâmicas internas das comunidades/grupos que estão envolvidos em tal movimento.

O livro de Biehl e Mügge segue uma ordem cronológica simples mas didática, reconstruindo a trajetória de João Jorge Klein da Prússia Renana até o Brasil, fazendo as devidas e necessárias conexões com os diferentes contextos que o personagem se inseriu e interagiu, ligando sua vida a de outros colonos imigrantes alemães, comparando-as, confrontando-as, do seu nascimento em 1822, em Womrath, região de Hunsrück, na Renânia, até a sua morte, em 1915, na cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul. Com o objetivo de seguir a trajetória de Klein, os autores realizam o entrecruzamento de fontes heterogêneas, encontradas em diferentes arquivos em países distantes, como Brasil, Alemanha e Estados Unidos, em dois continentes. Mostram ainda um talento narrativo ímpar, com um texto envolvente em um enredo repleto de tensão e suspense.

Colono letrado, João Jorge Klein imigrou para o Brasil com a irmã, chegando em março de 1853, seguindo os passos de um irmão mais velho que morava na colônia São Leopoldo desde 1827. Aqui, João Jorge Klein casou-se e teve vários filhos, tornando-se pastor-leigo e agricultor na colônia germânica então chamada Leonerhof (Sapiranga). Por muito tempo João Jorge Klein foi considerado o “mentor intelectual” dos Mucker, a “mente ardilosa” por trás do movimento sedicioso que abalou o Rio Grande do Sul na década de 1870. Essa interpretação foi o resultado de uma propaganda distorcida, tendenciosa que se iniciou com Carlos Von Koseritz, ex-Brummer que chegou ao Brasil no ano de 1851 para combater pelo Exército brasileiro contra os generais portenhos Manoel Oribe e Juan Manoel de Rosas. Após, já em Porto Alegre, tornou-se um dos maiores defensores de um tipo de germanismo orientado a considerar o elemento alemão superior às demais raças. Para Koseritz, aqueles “laboriosos colonos” alemães não teriam como começar um movimento sedicioso sem que por trás não houvesse a “manipulação” de alguém. Esse alguém era João Jorge Klein, que estaria “descontente pela perda de seu posto de pastor-leigo na colônia”, declarava Koseritz.

Acredita-se que não cabe ao historiador julgar, apenas compreender o passado. Pela distância que estamos daqueles fatos, pela quantidade de fontes que temos à nossa disposição e pela ampla bibliografia produzida sobre o movimento Mucker, não há como apenas compreender. Por mais utópico que seja, é preciso buscar a verdade, ou, ao menos, aproximarmo-nos dela. Assim, já é possível apontar os equívocos e responsáveis pelo massacre que aconteceu contra os colonos Mucker em junho/julho de 1874. E é isso que fazem os autores do livro ao longo dos capítulos, sempre embasados por muitas fontes históricas, com interpretações originais e amparados por vasta bibliografia.

Como afirmei anteriormente, não é possível entender o movimento Mucker sem, antes, apreender as lógicas internas dos grupos, seus valores e códigos morais, reconstruir suas redes de parentesco e vizinhança, captar as disputas por terra e rixas entre vizinhos e mesmo parentes; não sem antes analisar o que foi o pietismo alemão que foi trazido, por exemplo, pelo avô de Jacobina, Libório Mentz, em 1824 (referencio o ótimo estudo de Martin Dreher, que escreveu o livro “A Religião de Jacobina”, publicado pela OIKOS em 2017). E assim foi feito por Biehl e Mügge ao longo da obra, trazendo informações novas combinadas as já conhecidas. Aos poucos as peças do quebra-cabeça começam a se encaixar, construindo um sentido novo ao fatal desenlace que se abateu ao grupo de colonos alemães pejorativamente chamados Mucker.

Na década de 1860, João Jorge Klein disputou na justiça o direito à herança de uma irmã falecida, que era casada com rico comerciante da região. Como procurador neste extenso processo, Klein contatou Lúcio Schreiner, também imigrante e morador da colônia são Leopoldo. De acordo com os autores do livro, Lúcio Shreiner tinha pretensões políticas e de poder que, para serem concretizadas, necessitavam de apoio das comunidades germânicas espalhadas pela região. Pretendia lançar-se candidato a vereador e esperava amplo apoio de seus parentes. Ele era primo, por parte de mãe, de Jacobina Mentz e da esposa de João Jorge Klein. Nas eleições de 1872, contudo, Lúcio Schreiner conquistou apenas 8 votos, não recebendo um voto sequer dos familiares das colônias de Sapiranga. O ressentimento deve ter atingido Lúcio Schreiner. Seu irmão mais velho conseguiu se eleger vereador, cabendo a Lúcio substituí-lo no cargo de delegado de polícia de São Leopoldo. O projeto familiar de poder de Lúcio Schreiner era bastante claro entre os parentes (Biehl, Mügge, p. 158-59). E foi na condição de delegado de polícia que Lúcio recebeu as primeiras queixas contra as reuniões cada vez mais frequentes ao redor do casal João Jorge Maurer e Jacobina Mentz, aos pés da imponente montanha do Ferrabrás, em Sapiranga.

Em maio de 1873, uma petição queixosa assinada por dezenas de vizinhos do casal Maurer, encabeçada por um pastor luterano e um padre jesuíta, e respaldada por inspetor de quarteirão e subdelegado de polícia, chegou às mãos do então delegado Lúcio Schreiner. Dizia a tal petição que as reuniões na casa dos Maurer estavam crescendo e causando a discórdia e a separação das famílias. E a segurança de todos estava em jogo. Esta foi a oportunidade que o delegado Lúcio Schreiner parecia estar aguardando para agir contra seus parentes.

Sua obstinação em persegui-los e aos outros colonos adeptos da “seita” passava por alimentar a impressa da capital com desinformação e distorções de fatos – para isso contando com o apoio de Carlos Von Koseritz. O jornalista e germanista Carlos Von Koseritz, através do seu e de outros jornais, inoculou o veneno do ódio em boa parte da sociedade sul-rio-grandense, sugerindo, não poucas vezes, que os Mucker deveriam ser “linchados” pela ameaça que representavam, que a “seita era imoral por pregar o comunismo e que era uma ameaça à vida comunitária, à propriedade privada e à própria existência do Estado” (Biehl; Mügge, p. 169).

Ao passo que Koseritz atacava os Mucker por preocupar-se com a imagem negativa que tal grupo representava à sua apologia à raça germânica, o esforço de Lúcio Schreiner só se explica se acreditarmos que havia outros assuntos não resolvidos entre ele e os colonos Mucker, e não apenas por não ter recebido votos da parentela nas eleições para vereador de 1872. Enquanto novas evidências não surgem, acreditamos que Lúcio era uma pessoa profundamente rancorosa e vingativa, o que se comprova pela sequência de atos tomados contra os Mucker. Comunicou-se com o Chefe de Polícia da Província alertando-o que o que acontecia na casa dos Maurer era um “fanatismo religioso” que não se podia prever as consequências. Não aceitando a cautela do Chefe de Polícia, Shreiner começou a acusar sem provas, realizou julgamentos prévios, cometeu abuso de autoridade, fez prisões arbitrárias, humilhou e roubou os investigados, criou fatos, espalhou boatos, plantou provas para incriminá-los... nada parecia deter o projeto de vingança de Lúcio Schreiner. Enfim, após tantas ofensivas, conseguiu que os Mucker reagissem violentamente, fazendo com que o Chefe de Polícia da província autorizasse o uso da força, inclusive do Exército brasileiro, contra os colonos insurgentes.

Igualmente atacado, o nosso personagem João Jorge Klein, considerado como o “intelectual” por trás da seita, tentava defender-se escrevendo para os jornais da capital Porto Alegre, chamando os opositores dos Mucker de “mentirosos”, “desonestos”, “covardes”, “patifes”, “lobos”. “João Jorge Klein percebia as articulações políticas e ideológicas que estavam sendo tramadas” contra ele e os parentes. Não tardou para que suas cartas parassem de ser publicadas nos jornais (Biehl, Mügge, p. 177). Klein, então, passou a escrever diretamente aos dois maiores rivais dos Mucker: o delegado Lúcio Schreiner e o jornalista Carlos von Koseritz, tentando demovê-los do caminho que tomavam. Estas cartas estão traduzidas no final do livro aqui resenhado, compondo um conjunto de documentos com alto valor histórico. Dentre as cartas, escreveu uma ditada por sua cunhada e outra pela própria Jacobina Maurer, que fazia apelo ao primo Lúcio Shcreiner para que parasse com as perseguições. A líder Mucker revelava o temor maior: a deportação, ou seja, o retorno para um mundo que já os havia hostilizado. Sabemos que o avô, Libório Mentz, havia emigrado, juntamente com sua família, por desavenças religiosas na comunidade em que vivia na Alemanha. A súplica de Jacobina, contudo, não alterou em nada a postura do primo delegado.

No dia 24 de junho de 1874, João Jorge Klein apresentou-se à polícia de São Leopoldo para fazer uma última tentativa de evitar o derramamento de sangue que se avizinhava. Acabou preso, o que salvou sua vida, pois, na noite seguinte, as colônias começaram a arder em fogo (Biehl, Mügge, p. 183). O Exército brasileiro foi utilizado para aniquilar os Mucker, algo inédito até então, mas que se repetiria nos movimentos de Canudos, na Bahia, em 1897; no Contestado, em Santa Catarina, a partir de 1914; e em outros tantos movimentos populares brasileiros em que a ordem interna do país estava “ameaçada”.

Como não posso reproduzir melhor, cito literalmente os próprios autores que concluem, magistralmente, sobre a injustiça cometida contra os Mucker:

 

Apanhados em boatos e tramas sinistras, desumanizados pelos vizinhos e proscritos pelas autoridades locais, os ostracizados Mucker acabariam por encarnar a figura monstruosa em que tinham sido moldados [grifos meus]. Incapazes de vislumbrar um futuro que não fosse o de sua aniquilação, buscaram vingança e justiça com as próprias mãos. (...)

 

As colônias alemãs do Império brasileiro haviam se tornado palco de uma fúria armada generalizada. Heróis da Guerra do Paraguai [1864-1870] galvanizaram grupos de vizinhos armados [criando milícias de colonos], que retaliaram, incendiando propriedades de famílias Mucker nos rincões mais distantes de São José do Hortêncio e Linha Nova. O apelo das lideranças germanistas para o extermínio dos primitivos-embusteiros-criminosos Mucker alcançou seu objetivo (Biehl, Mügge, p. 183).

 

O livro de João Biehl e Miquéias Mügge apresenta um Epílogo intitulado “Além dos escritos do cárcere”, em que narram a batalha de João Jorge Klien após o massacre de 1874 e suas tentativas de recuperar a honra duramente atacada. Preso e julgado, foi colocado em liberdade somente em 1880, não sem a oposição de Carlos von Koseritz, que continuava atribuindo a Klein toda a culpa do episódio Mucker.

Nos seus escritos do cárcere, datados da década de 1870, Klein “não negava que alguns Mucker tivessem praticado atos criminosos”. Mas considerava os “verdadeiros culpados desta vergonha” não os “judiados” e “ingênuos” colonos, “mas a atuação errada e ilegal das autoridades” (Biehl, Mügge, p. 204). Passou o restante da vida tentando desfazer a imagem negativa que pairava sobre si e as famílias estigmatizadas que receberiam ainda outros duros golpes: o assassinato de pessoas ligadas ao movimento, na Fazenda Pirajá (interior de Nova Petrópolis) e na Linha Bastos (próximo a Lajeado), no final da década de 1890.  E, para reacender o ódio, o livro do padre jesuíta Ambrósio Shupp, “Os Mucker”, que reascendeu o “sentimento de insegurança e medo naqueles marcados como Mucker” (Biehl, Mügge, p. 202). Escrito em 1878, portanto, quase que no calor dos fatos, “o livro foi embargado até 1900, quando foi publicado na Alemanha. No Brasil, graças aos esforços dos jesuítas de São Leopoldo, foi lançado em 1906.” (Biehl, Mügge, p. 244). Indignados com o livro do padre Ambrósio, os filhos de João Jorge Klein deram sequência a luta do pai, buscando que a sua versão fosse divulgada na imprensa do início do século: “Klein desejava, através dos filhos, ‘ser honrado’” (Biehl, Mügge, p. 204).

Não restam dúvidas de que a obra de João Biehl e Miquéias Mügge reforça e muito as tentativas de outros(as) historiadores(as) que estão há décadas tentando denunciar um erro histórico que foi o massacre Mucker, dando voz aos colonos massacrados. Os documentos inéditos e as novas informações reveladas no livro certificam quem era quem naquela tragédia. Como declaram os autores, “muitos morreram injustiçados, levando consigo a aflição da injúria e da desonra, como se criminosos fossem” (Biehl, Mügge, p. 202). Se não houve justiça à época, e sendo a justiça divina duvidosa por ser uma questão de fé, ao menos que a História faça justiça aos Mucker.