terça-feira, 28 de agosto de 2018

Relatos de uma experiência antropológica
Cerro Chalpón, Motupe, Peru, agosto de 2018

Quase chegando ao topo da montanha, me deparei com a fonte de água que brota do meio da grande rocha. Enquanto esperávamos a vez para encher nossas garrafinhas com o precioso líquido, acercou-se uma jovem peruana perguntando de onde vínhamos. Tomei a frente e respondi que éramos do Brasil e estávamos realizando um documentário a respeito das devoções iniciadas pelo eremita "Juan Agustín Abad" (como é conhecido no Peru o nosso monge João Maria). Mostrando-se muito interessada, a jovem questionou se era verdade que os ossos do eremita estavam em Roma e que ele havia sido canonizado. Por milésimos de segundos hesitei em responder.

Pequena aglomeração para encher as garrafas com a água da fonte do eremita.

Crianças enchendo garrafas. Naquele dia, a água estava escassa devido à alta demanda. A aparência um pouco arenosa não impediu que muitos saíssem de lá com vários litros da "água benta".

Aviso aos peregrinos.
Sem sombra de dúvidas, a festa da Santíssima Cruz de Motupe é a mais concorrida devoção das Américas que ainda existe e que tem ligação com o monge/eremita João Maria de Agostini. Comemorada em agosto (do dia primeiro até o dia 5), talvez seja a única festa em homenagem a Santa Cruz fora do mês de setembro. São milhares de pessoas que circulam pela região durante os dias do evento. Vendedores ambulantes de todo tipo, que oferecem desde produtos religiosos até poções extraídas de animais como iguanas, cobras e jacarés, são encontrados nas escadarias que levam ao topo da montanha. Esses "curandeiros" têm a aprovação popular, e a região norte do Peru é muito conhecida pela presença deles.

Restaurante, olhares, o Menu e a carne secando

Objetos religiosos à venda

Muitas velas para a Santa Cruz de Motupe
A cruz começa a descer da montanha no dia primeiro de agosto, com muita reza e concorrência das pessoas que querem auxiliar no descenso do "santo madero". Até chegar à igreja matriz de Motupe, no dia 5, ela irá percorrer vários quilômetros e irá parar em algumas capelas e vilas no caminho. O clima de deserto se sente na pele: quente durante o dia, muito frio à noite. Além disso, chama a atenção a pobreza das casas que estão no caminho da Santa Cruz. Parecia que estávamos no sertão de Canudos, em pleno Arraial de Antônio Conselheiro.

Moto-táxi no deserto aos pés do Cerro Chalpón.
O mais interessante é que Agostini construiu esta cruz em 1841, mas ela só se tornou centro de devoção em 1868. Durante esse intervalo de tempo, ela ficou escondida no alto do Cerro Chalpón, sem quem ninguém a encontrasse. Precisou o Peru ser sacudido por um grave terremoto, em 13 de agosto de 1868, deixando muitos mortos e feridos, para que os moradores de Motupe lembrassem da obra do eremita e de seu recado antes de desaparecer. Segundo tradição oral que se perpetuou, o "padre santo" havia dito que quando o "fim do mundo" estivesse próximo, as pessoas de Motupe poderiam se valer da Santa Cruz para protegê-las do mal. Para isso, deveriam encontrá-la e levá-la para o centro da vila, pois, uma vez ela estando ali, nada aconteceria aos moradores do povoado.

Mesmo envolvido por placas de metal, é possível tocar no "santo madero".
Em 1869, as previsões catastróficas de um astrólogo alemão (chamado Rodolfo Falb) chegaram ao Peru. Dizia ele que tanto o Peru, quanto o Equador e o México, seriam abalados por mais tremores de terra. Temerosos com o forte terremoto de um ano antes, os peruanos abandonaram casas, esvaziaram cidades, deixaram seus negócios para trás e foram buscar abrigo em lugares ermos. O vaticínio do astrólogo alemão não se confirmou, ou antes, pequenos tremores de fato aconteceram, mas de baixa intensidade e sem vítimas. No norte, mais precisamente em Motupe, os moradores acreditaram que a Santa Cruz feita pelo eremita havia protegido a todos.

Santa Cruz segue seu caminho para a cidade de Motupe.
Inicialmente tímida, a festa passou por distintas fases até se tornar uma das mais concorridas de todo o país. Em janeiro de 2018, o papa Francisco, em visita ao Peru, abençoou a Santa Cruz de Motupe.

Para mais informações a respeito da visita do papa ao Peru e seu encontro com a Santa Cruz, click AQUI ou AQUI

Concluindo, meu espírito de historiador falou mais alto. Respondi que não, e não pude deixar de notar certo desapontamento da jovem peruana.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

João Maria de Agostini não foi um homem comum. Sozinho, partiu de uma Europa assolada por guerras, fome e mortes. A Itália estava iniciando o processo de Unificação e muitos sentiam os efeitos disso. Escolheu a América (o continente) para levar uma vida de solidão e penitência. Mas quem diria que, apesar do desejo em imitar a vida de Santo Antônio Abade (o primeiro eremita cristão e que viveu no Egito nos primeiros séculos do cristianismo), tornou-se um dos maiores missionários católicos que a América conheceu?
Foto tirada em Havana, Cuba, em 1861.
Exímio orador, pregava o Evangelho de modo agressivo quando necessário, e não poucas vezes foi escorraçado de igrejas por atacar quem o ouvia. Como típico europeu de seu tempo, o comportamento arrogante, superior diante dos povos americanos, não era bem-visto por alguns. Mas, apesar disso, deixou marcas profundas e duradouras entre os populares: construiu vias-sacras, instituiu devoções, curou doentes a partir de seu conhecimento de "cientista natural", aconselhou, repartiu o pouco que conseguiu, fez-se santo! Sua aparência se enquadrava ao estilo dos santos bíblicos: barbas longas, cajado de peregrino, hábito religioso, objetos sacros e comportamento exemplar. Um "iluminado" que, além de tudo, falava vários idiomas (latim, dialeto do Piemonte, francês, espanhol e português). Peregrinou por mais de 30 anos no continente, e faleceu possivelmente pelas mãos daqueles que ele mais deu atenção durante esse tempo: os índios (Apaches que estavam em guerra contra o homem branco que tomava seu território no estado do Novo México).

Encontro necessário e muito esperado

Lápide de Juan Maria de Agostini,
o "Eremita do Novo México" (Mesilla, EUA).
Sabe-se que um livro não seria, e não é, suficiente para dar conta de toda essa história. Seria preciso muito mais: um documentário, filme, série, enfim, algo que pudesse divulgar minimamente o que fez este bravo e controverso homem. Por isso estamos (a equipe da Plural Filmes e eu), desde o ano passado, percorrendo inúmeros lugares por onde Agostini passou e deixou alguma devoção continuada por seus devotos/admiradores: no Brasil, nos Estados Unidos, na Argentina, no Peru e no México. Documentário longa-metragem que tentará contar as crenças, lendas e histórias a respeito do monge/eremita, mas, acima de tudo, aproximar lugares e pessoas.

Conjunto rochoso onde está "La Cueva", local onde Agostini morou em Mesilla entre 1867 e 1869. A poucos metros dali seu corpo foi encontrado, morto, com perfurações nas costas. 

Equipe de filmagem em "La Cueva" (Mesilla, EUA)

Entardecer, "La Cueva".
Montanha do Eremita, norte do Novo México (EUA)
No alto da Montanha do Eremita (2.100 m de altitude).

Pedras durante a subida da montanha
Trilhas na montanha
Cerro Chalpón, norte do Peru.
Santa Cruz de Motupe. Obra feita por Agostini em 1841, venerada até hoje pelos peruanos
Ponto de parada da Santa Cruz, ainda no meio da montanha.
Praça Central, Motupe. Milhares aguardam a chegada da Santa Cruz.