sábado, 7 de janeiro de 2023

Escritos perdidos: o massacre dos Mucker e o direito à memória

    Abro espaço neste Blog para apresentar uma resenha que fiz do livro "Escritos perdidos", de autoria de João Biehl e Miquéias Mügge, recentemente lançado pela Editora OIKOS. Como historiador público que pretendo ser e imbuído de espírito crítico que me incomoda há tempos, estou interessado em divulgar pesquisas sérias feitas por profissionais capacitados. Além disso, sou cidadão que fica indignado quando se depara com injustiças. E uma delas ocorreu há quase 150 anos, com colonos alemães envolvidos em uma trama nefasta capitaneada por jornalistas germanistas e concidadãos movidos por ressentimentos e desejos de vingança. Ao término da leitura do fantástico livro de Biehl e Mügge, tomei a firme decisão de divulgar tal pesquisa, aliando-me a eles na tarefa de tentar reparar um erro histórico. E ainda, mostrar aos descendentes dos colonos Mucker que eles têm direito à verdade e a uma memória digna. Caso alguém queira debater sobre o episódio Mucker, sobre o livro ou a resenha que segue, favor entrar em contato. Boa leitura!

“Escritos perdidos, vida e obra de um imigrante insurgente – Johann Georg Klein (1822-1915)”, de João Biehl e Miquéias Mügge, São Leopoldo: OIKOS, 2022. 486 p.


Um manuscrito perdido é o ponto de partida de uma pesquisa minuciosa feita pelos professores doutores João Biehl e Miquéias Mügge, em livro intitulado “Escritos perdidos”, que narra a vida e a obra de um imigrante germânico chamado Johann Georg Klein (1822-1915). O livro é dividido em quatro capítulos, com um prólogo e um epílogo que não podem ser confundidos com introdução e conclusão. O manuscrito de Johann Georg Klein – Vom Katechismus, perdido por mais de um século e que estava de posse dos descendentes do historiador Leopoldo Petry, está traduzido e transcrito na íntegra na segunda metade do livro. Nas páginas finais, um conjunto de cartas escritas pelo personagem e por ele redigidas em nome da líder Mucker Jacobina Mentz Maurer e de sua irmã Carolina Mentz. A obra ainda é repleta de mapas, fotografias, litografias, reprodução de cartas, trazendo qualidade e informação ao texto muito bem construído.

O manuscrito é um tratado teológico luterano feito pelo então adolescente Johann Georg Klein – ou João Jorge Klein, para facilitar nosso entendimento – quando ainda estava na Prússia Renana e tinha apenas 16 anos, ou seja, escrito em 1838. Tal manuscrito teológico luterano, de feições populares, denominado Vom Katechismus, foi, durante algum tempo, considerado o “catecismo dos Mucker”. Tal livro foi trazido por João Jorge Klein ao Brasil, guardado com zelo até o final da vida para, sem seguida, ser repassado pelos filhos ao historiador acima citado, Leopoldo Petry, para que o publicasse. Um verdadeiro “livro transatlântico”, segundo palavras de Biehl e Mügge.

O texto do jovem João Jorge Klein de fato revela que ele “defendia ideias de cunho petista e valorizava a participação leiga na comunidade...” (Biehl; Mügge, p. 17). O pietismo alemão veio com o grupo que chegou ao sul do Brasil no início da imigração, na década de 1820, e pode explicar, em parte, o que motivou a família Mentz/Maurer a iniciar o movimento de separação total com os demais grupos luteranos das colônias germânicas do sul do Brasil. Porém, o que me provocou a escrever esta resenha não foi tanto o tratado teológico do jovem João Jorge Klein – por sinal, interessante em vários sentidos e que exige um estudo mais demorado e atento –, mas a confirmação de uma ideia que sustento há tempos, qual seja: para compreendermos a fundo um movimento religioso é preciso, antes, entender as lógicas e dinâmicas internas das comunidades/grupos que estão envolvidos em tal movimento.

O livro de Biehl e Mügge segue uma ordem cronológica simples mas didática, reconstruindo a trajetória de João Jorge Klein da Prússia Renana até o Brasil, fazendo as devidas e necessárias conexões com os diferentes contextos que o personagem se inseriu e interagiu, ligando sua vida a de outros colonos imigrantes alemães, comparando-as, confrontando-as, do seu nascimento em 1822, em Womrath, região de Hunsrück, na Renânia, até a sua morte, em 1915, na cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul. Com o objetivo de seguir a trajetória de Klein, os autores realizam o entrecruzamento de fontes heterogêneas, encontradas em diferentes arquivos em países distantes, como Brasil, Alemanha e Estados Unidos, em dois continentes. Mostram ainda um talento narrativo ímpar, com um texto envolvente em um enredo repleto de tensão e suspense.

Colono letrado, João Jorge Klein imigrou para o Brasil com a irmã, chegando em março de 1853, seguindo os passos de um irmão mais velho que morava na colônia São Leopoldo desde 1827. Aqui, João Jorge Klein casou-se e teve vários filhos, tornando-se pastor-leigo e agricultor na colônia germânica então chamada Leonerhof (Sapiranga). Por muito tempo João Jorge Klein foi considerado o “mentor intelectual” dos Mucker, a “mente ardilosa” por trás do movimento sedicioso que abalou o Rio Grande do Sul na década de 1870. Essa interpretação foi o resultado de uma propaganda distorcida, tendenciosa que se iniciou com Carlos Von Koseritz, ex-Brummer que chegou ao Brasil no ano de 1851 para combater pelo Exército brasileiro contra os generais portenhos Manoel Oribe e Juan Manoel de Rosas. Após, já em Porto Alegre, tornou-se um dos maiores defensores de um tipo de germanismo orientado a considerar o elemento alemão superior às demais raças. Para Koseritz, aqueles “laboriosos colonos” alemães não teriam como começar um movimento sedicioso sem que por trás não houvesse a “manipulação” de alguém. Esse alguém era João Jorge Klein, que estaria “descontente pela perda de seu posto de pastor-leigo na colônia”, declarava Koseritz.

Acredita-se que não cabe ao historiador julgar, apenas compreender o passado. Pela distância que estamos daqueles fatos, pela quantidade de fontes que temos à nossa disposição e pela ampla bibliografia produzida sobre o movimento Mucker, não há como apenas compreender. Por mais utópico que seja, é preciso buscar a verdade, ou, ao menos, aproximarmo-nos dela. Assim, já é possível apontar os equívocos e responsáveis pelo massacre que aconteceu contra os colonos Mucker em junho/julho de 1874. E é isso que fazem os autores do livro ao longo dos capítulos, sempre embasados por muitas fontes históricas, com interpretações originais e amparados por vasta bibliografia.

Como afirmei anteriormente, não é possível entender o movimento Mucker sem, antes, apreender as lógicas internas dos grupos, seus valores e códigos morais, reconstruir suas redes de parentesco e vizinhança, captar as disputas por terra e rixas entre vizinhos e mesmo parentes; não sem antes analisar o que foi o pietismo alemão que foi trazido, por exemplo, pelo avô de Jacobina, Libório Mentz, em 1824 (referencio o ótimo estudo de Martin Dreher, que escreveu o livro “A Religião de Jacobina”, publicado pela OIKOS em 2017). E assim foi feito por Biehl e Mügge ao longo da obra, trazendo informações novas combinadas as já conhecidas. Aos poucos as peças do quebra-cabeça começam a se encaixar, construindo um sentido novo ao fatal desenlace que se abateu ao grupo de colonos alemães pejorativamente chamados Mucker.

Na década de 1860, João Jorge Klein disputou na justiça o direito à herança de uma irmã falecida, que era casada com rico comerciante da região. Como procurador neste extenso processo, Klein contatou Lúcio Schreiner, também imigrante e morador da colônia são Leopoldo. De acordo com os autores do livro, Lúcio Shreiner tinha pretensões políticas e de poder que, para serem concretizadas, necessitavam de apoio das comunidades germânicas espalhadas pela região. Pretendia lançar-se candidato a vereador e esperava amplo apoio de seus parentes. Ele era primo, por parte de mãe, de Jacobina Mentz e da esposa de João Jorge Klein. Nas eleições de 1872, contudo, Lúcio Schreiner conquistou apenas 8 votos, não recebendo um voto sequer dos familiares das colônias de Sapiranga. O ressentimento deve ter atingido Lúcio Schreiner. Seu irmão mais velho conseguiu se eleger vereador, cabendo a Lúcio substituí-lo no cargo de delegado de polícia de São Leopoldo. O projeto familiar de poder de Lúcio Schreiner era bastante claro entre os parentes (Biehl, Mügge, p. 158-59). E foi na condição de delegado de polícia que Lúcio recebeu as primeiras queixas contra as reuniões cada vez mais frequentes ao redor do casal João Jorge Maurer e Jacobina Mentz, aos pés da imponente montanha do Ferrabrás, em Sapiranga.

Em maio de 1873, uma petição queixosa assinada por dezenas de vizinhos do casal Maurer, encabeçada por um pastor luterano e um padre jesuíta, e respaldada por inspetor de quarteirão e subdelegado de polícia, chegou às mãos do então delegado Lúcio Schreiner. Dizia a tal petição que as reuniões na casa dos Maurer estavam crescendo e causando a discórdia e a separação das famílias. E a segurança de todos estava em jogo. Esta foi a oportunidade que o delegado Lúcio Schreiner parecia estar aguardando para agir contra seus parentes.

Sua obstinação em persegui-los e aos outros colonos adeptos da “seita” passava por alimentar a impressa da capital com desinformação e distorções de fatos – para isso contando com o apoio de Carlos Von Koseritz. O jornalista e germanista Carlos Von Koseritz, através do seu e de outros jornais, inoculou o veneno do ódio em boa parte da sociedade sul-rio-grandense, sugerindo, não poucas vezes, que os Mucker deveriam ser “linchados” pela ameaça que representavam, que a “seita era imoral por pregar o comunismo e que era uma ameaça à vida comunitária, à propriedade privada e à própria existência do Estado” (Biehl; Mügge, p. 169).

Ao passo que Koseritz atacava os Mucker por preocupar-se com a imagem negativa que tal grupo representava à sua apologia à raça germânica, o esforço de Lúcio Schreiner só se explica se acreditarmos que havia outros assuntos não resolvidos entre ele e os colonos Mucker, e não apenas por não ter recebido votos da parentela nas eleições para vereador de 1872. Enquanto novas evidências não surgem, acreditamos que Lúcio era uma pessoa profundamente rancorosa e vingativa, o que se comprova pela sequência de atos tomados contra os Mucker. Comunicou-se com o Chefe de Polícia da Província alertando-o que o que acontecia na casa dos Maurer era um “fanatismo religioso” que não se podia prever as consequências. Não aceitando a cautela do Chefe de Polícia, Shreiner começou a acusar sem provas, realizou julgamentos prévios, cometeu abuso de autoridade, fez prisões arbitrárias, humilhou e roubou os investigados, criou fatos, espalhou boatos, plantou provas para incriminá-los... nada parecia deter o projeto de vingança de Lúcio Schreiner. Enfim, após tantas ofensivas, conseguiu que os Mucker reagissem violentamente, fazendo com que o Chefe de Polícia da província autorizasse o uso da força, inclusive do Exército brasileiro, contra os colonos insurgentes.

Igualmente atacado, o nosso personagem João Jorge Klein, considerado como o “intelectual” por trás da seita, tentava defender-se escrevendo para os jornais da capital Porto Alegre, chamando os opositores dos Mucker de “mentirosos”, “desonestos”, “covardes”, “patifes”, “lobos”. “João Jorge Klein percebia as articulações políticas e ideológicas que estavam sendo tramadas” contra ele e os parentes. Não tardou para que suas cartas parassem de ser publicadas nos jornais (Biehl, Mügge, p. 177). Klein, então, passou a escrever diretamente aos dois maiores rivais dos Mucker: o delegado Lúcio Schreiner e o jornalista Carlos von Koseritz, tentando demovê-los do caminho que tomavam. Estas cartas estão traduzidas no final do livro aqui resenhado, compondo um conjunto de documentos com alto valor histórico. Dentre as cartas, escreveu uma ditada por sua cunhada e outra pela própria Jacobina Maurer, que fazia apelo ao primo Lúcio Shcreiner para que parasse com as perseguições. A líder Mucker revelava o temor maior: a deportação, ou seja, o retorno para um mundo que já os havia hostilizado. Sabemos que o avô, Libório Mentz, havia emigrado, juntamente com sua família, por desavenças religiosas na comunidade em que vivia na Alemanha. A súplica de Jacobina, contudo, não alterou em nada a postura do primo delegado.

No dia 24 de junho de 1874, João Jorge Klein apresentou-se à polícia de São Leopoldo para fazer uma última tentativa de evitar o derramamento de sangue que se avizinhava. Acabou preso, o que salvou sua vida, pois, na noite seguinte, as colônias começaram a arder em fogo (Biehl, Mügge, p. 183). O Exército brasileiro foi utilizado para aniquilar os Mucker, algo inédito até então, mas que se repetiria nos movimentos de Canudos, na Bahia, em 1897; no Contestado, em Santa Catarina, a partir de 1914; e em outros tantos movimentos populares brasileiros em que a ordem interna do país estava “ameaçada”.

Como não posso reproduzir melhor, cito literalmente os próprios autores que concluem, magistralmente, sobre a injustiça cometida contra os Mucker:

 

Apanhados em boatos e tramas sinistras, desumanizados pelos vizinhos e proscritos pelas autoridades locais, os ostracizados Mucker acabariam por encarnar a figura monstruosa em que tinham sido moldados [grifos meus]. Incapazes de vislumbrar um futuro que não fosse o de sua aniquilação, buscaram vingança e justiça com as próprias mãos. (...)

 

As colônias alemãs do Império brasileiro haviam se tornado palco de uma fúria armada generalizada. Heróis da Guerra do Paraguai [1864-1870] galvanizaram grupos de vizinhos armados [criando milícias de colonos], que retaliaram, incendiando propriedades de famílias Mucker nos rincões mais distantes de São José do Hortêncio e Linha Nova. O apelo das lideranças germanistas para o extermínio dos primitivos-embusteiros-criminosos Mucker alcançou seu objetivo (Biehl, Mügge, p. 183).

 

O livro de João Biehl e Miquéias Mügge apresenta um Epílogo intitulado “Além dos escritos do cárcere”, em que narram a batalha de João Jorge Klien após o massacre de 1874 e suas tentativas de recuperar a honra duramente atacada. Preso e julgado, foi colocado em liberdade somente em 1880, não sem a oposição de Carlos von Koseritz, que continuava atribuindo a Klein toda a culpa do episódio Mucker.

Nos seus escritos do cárcere, datados da década de 1870, Klein “não negava que alguns Mucker tivessem praticado atos criminosos”. Mas considerava os “verdadeiros culpados desta vergonha” não os “judiados” e “ingênuos” colonos, “mas a atuação errada e ilegal das autoridades” (Biehl, Mügge, p. 204). Passou o restante da vida tentando desfazer a imagem negativa que pairava sobre si e as famílias estigmatizadas que receberiam ainda outros duros golpes: o assassinato de pessoas ligadas ao movimento, na Fazenda Pirajá (interior de Nova Petrópolis) e na Linha Bastos (próximo a Lajeado), no final da década de 1890.  E, para reacender o ódio, o livro do padre jesuíta Ambrósio Shupp, “Os Mucker”, que reascendeu o “sentimento de insegurança e medo naqueles marcados como Mucker” (Biehl, Mügge, p. 202). Escrito em 1878, portanto, quase que no calor dos fatos, “o livro foi embargado até 1900, quando foi publicado na Alemanha. No Brasil, graças aos esforços dos jesuítas de São Leopoldo, foi lançado em 1906.” (Biehl, Mügge, p. 244). Indignados com o livro do padre Ambrósio, os filhos de João Jorge Klein deram sequência a luta do pai, buscando que a sua versão fosse divulgada na imprensa do início do século: “Klein desejava, através dos filhos, ‘ser honrado’” (Biehl, Mügge, p. 204).

Não restam dúvidas de que a obra de João Biehl e Miquéias Mügge reforça e muito as tentativas de outros(as) historiadores(as) que estão há décadas tentando denunciar um erro histórico que foi o massacre Mucker, dando voz aos colonos massacrados. Os documentos inéditos e as novas informações reveladas no livro certificam quem era quem naquela tragédia. Como declaram os autores, “muitos morreram injustiçados, levando consigo a aflição da injúria e da desonra, como se criminosos fossem” (Biehl, Mügge, p. 202). Se não houve justiça à época, e sendo a justiça divina duvidosa por ser uma questão de fé, ao menos que a História faça justiça aos Mucker.


sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Os últimos momentos da vida de um peregrino

Os momentos finais da vida do eremita João Maria de Agostini. 

"Sua respiração está difícil. O peito e a cabeça apresentam contusões profundas. Segura firme um crucifixo em sua mão direita. Estirado ao chão, de bruços, puxa o ar que teima em não encher seus pulmões. A cada tentativa, a terra entra pela boca misturada com sangue.

Será meu este sangue?, pensa.

Tenta levantar-se e não consegue. Quer mexer os braços, as pernas. Nada. Agora tem certeza. É seu próprio sangue que corre pela nuca e inunda a terra que entra pela boca. Apesar da agonia, ainda pode ver. Enxerga alguns arbustos e pedras, mas são dois animais que chamam sua atenção.

Paisagem onde se passa a morte do eremita. Sul do Novo México (EUA)

O dorso da serpente brilha, e para ela vai sua atenção. Sabe de quem se trata, pois passou a vida também pregando em Seu nome. Rastejando, ela se aproxima e sussurra:

O teu orgulho te trouxe até aqui. Veja o resultado! Deverias saber como Eu trato os arrogantes, homem vaidoso! 

Antes de tentar balbuciar algo, seus ouvidos captam outras vozes. Conhece-as e entende o que dizem. Galopes fazem o chão tremer e a poeira levantar, e parecem se afastar. Tenta chamá-los, mas engasga com a terra e o sangue. O sol desponta entre as montanhas. O único som que escuta agora é o vento, que lhe traz lembranças. Fecha os olhos e vê a vida cruzar diante de si. Sente remorso, medo. Com muita dificuldade, implora:

Deus misericordioso, perdoai-me!

Após breve instante, a víbora brilhante se afasta e o coelho se materializa, dizendo:

Aceito o teu sacrifício e arrependimento. Venha comigo, filho!

Instantaneamente, a agonia passa. Não há mais ardência no peito nem latejar da cabeça. Agora é o silêncio. E no silêncio, a lucidez. Enfim, compreende: a promessa estava paga!"

Perguntas: Quem representam a serpente e o coelho? Qual era a promessa que naquele instante estava paga?

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A primeira biografia do monge João Maria

    Muito antes do que se poderia imaginar, um escritor anônimo divulgava, no jornal O Mercantil, em 16 de abril de 1851, o já extenso percurso do italiano João Maria de Agostini. E escreveu com uma riqueza de detalhes que só quem teve proximidade ao monge poderia ter feito. O artigo inicia sob o título: “O Monge do Cubatão”. Acompanhemos, assim, o roteiro do “admirável peregrino” segundo esse autor anônimo.

Serra Geral, São Paulo

   
 [O monge João Maria de Agostini] Fez sete anos de penitência nas partes mais desertas da Itália, e depois partiu de Roma para a Suíça, e peregrinou pela Germânia, Inglaterra, França, Espanha e Portugal. Da cidade de Nantes [França], embarcou no grande mar oceano [Atlântico], e desembarcou no primeiro ponto da América meridional, porto da cidade de Caracas. Dalí, com um saco de livros as costas, passou por horríveis, medonhos e desertos lugares, por entre feras e bugres, e caudalosos rios até Santa Fé de Bogotá, Popayán, Quito e o altíssimo [Vulcão] Chimborazo, as grandes Cordilheiras dos Andes, Guayaquil, de onde embarcou para o Peru, e passou por grandes áreas até Lima, e no seio destes medonhos desertos passou muitos anos.

    O trajeto dele do Peru ao Brasil, segundo este mesmo texto, incluiu navegação pelo “grande Rio Amazonas” até chegar a Tabatinga, já em solo brasileiro. Continuou por Pernambuco e alcançou o Rio de Janeiro. Após, moveu-se pelas cidades de Santos e São Paulo, “visitando muitos lugares até chegar ao Rio Grande do Sul, passando-se para Buenos Aires”. O anônimo autor também informa o modo como o monge viajava, bem como seus afazeres nesta jornada: “andando por mar e por terra em um sem número de léguas (...) e fazendo por meio de pregações, restaurar muitos altares, cruzes e capelas tanto na Itália como no Brasil e Peru.” E o autor conclui: “Este monge, maravilha do nosso século, não é prezado a pessoa alguma; vive de seu próprio suor, prega quando lhe mandam e, quando sai do deserto ou de outro lugar, não pede comida nem pousada; se lhe oferecem, recebe. (...) A regra deste venerado monge são as orações, as meditações, trabalhos, contínuo silêncio e jejuns.
    
    O autor informa que, em abril de 1851, o monge habitava a Serra de Cubatão, próximo a Santos. Este é um dado que ainda carece de esclarecimentos. O que se sabe é que, em 24 de dezembro deste mesmo ano de 1851, Agostini apareceu em São Borja, no Rio Grande do Sul, fazendo o sermão de Natal na igreja matriz da cidade. Se o autor anônimo não se enganou, o que estaria fazendo Agostini na Serra Geral paulista em abril de 1851? Vejamos uma possível resposta tendo como base as minhas próprias pesquisas e os documentos de viagem do monge que foram publicados em dois artigos de 1970, escritos pelo pesquisador italiano Flório Santini.

    João Maria de Agostini esteve no Rio de Janeiro em maio de 1849. Após deixar a cidade, tomou o rumo da Serra dos Órgãos, região montanhosa e onde se construía a Imperial cidade de Petrópolis. Inquieto e dono de uma energia sem igual, seguiu até a região mineira de Ouro Preto e Mariana, passando pelo igualmente majestoso Pico do Itacolomi. A seguir, rumou para a fazenda Monte Alto, cujo diretor Pedro de Almeida o autorizou, em julho de 1850, a ali permanecer algum tempo. E aqui nos deparamos com nova dúvida: qual local exato desta “fazenda Monte Alto”? Em Minas Gerais, São Paulo ou região serrana do Rio de Janeiro? O que parece certo é que foi em área cafeeira que Agostini ficou alguns meses daquele ano de 1850.

Pico do Itacolomi, MG


    O monge declarou ao diretor da fazenda que estava esperando um “certo Pedro Amado” trazer-lhe, da capital São Paulo, livros de orações e bíblias que seriam usados para trocar por mantimentos ou mesmo para negócio, já que o monge declarara “não gostar de pedir esmolas”. Agostini aguardou algum tempo a chegada de seus livros, permanecendo em uma caverna da região. Talvez Pedro Amado tenha se atrasado e o monge, impaciente, não quis esperá-lo. Em 20 de outubro de 1850, Agostini deixa a fazenda Monte Alto sem os livros, tomando caminho incerto. É neste momento que ele pode ter ido para São Paulo em busca das encomendas, estabelecendo-se, depois, na Serra Geral de Cubatão, próximo a Santos. Porém, estamos no campo das incertezas, e é isso que torna fascinante perseguir a trajetória deste peregrino italiano. Quando se descobre algo inédito, sempre surgem novas perguntas.

Estrada velha de Santos


    O anônimo autor do texto do jornal talvez tenha sido o próprio Pedro Amado, o sujeito que ficou responsável em levar para o monge os livros de oração e bíblias na fazenda Monte Alto. O que fica evidente é que a pessoa que redigiu o artigo do jornal conhecia muito bem a rota percorrida até então pelo italiano, certamente tendo ouvido do próprio tal itinerário.

    A pequena biografia escrita em abril de 1851 a respeito do monge “maravilha do nosso século” foi a primeira tentativa de divulgar publicamente o grandioso percurso de “um verdadeiro servo de Deus” que peregrinava por longínquas terras pregando o Evangelho. Dez anos depois, em Havana, Cuba, um fotógrafo irá tirar um retrato do monge nomeando-o como “A Maravilha do Nosso Século”, convertendo a foto em souvenir a ser vendido. Em 2019, um século e meio depois, um documentário produzido pela Plural Filmes também se rendeu à figura sem igual do monge, intitulando o trabalho “A Maravilha do Século”. Quem sou eu para questionar tais escolhas?

terça-feira, 28 de julho de 2020

Quando os militares ouviam a ciência


Em visita às aldeias indígenas do norte do Rio Grande do Sul no ano de 1848, o militar José Joaquim de Andrade Neves constatou que uma terrível enfermidade acometia os índios: a elefantíase. O aspecto da doença e as mortes estavam causando pavor aos outros índios que já abandonavam as aldeias indo refugiar-se nas matas em busca de seus próprios métodos de sanar tão medonha enfermidade.

Hoje sabemos que a elefantíase (filariose) é transmitida por mosquitos infectados por um parasita chamado Wuchereria bancrofti. Naquela época, contudo, os índios acreditavam em algum mal contagioso, que passava de pessoa para pessoa, ou mesmo em punição sobrenatural. Diante dessa situação, Andrade Neves encontrou uma solução para o caso: “parece-me acertado que estes enfermos fossem auxiliados com sustento e transporte e levados às águas minerais de Santa Maria da Boca do Monte, onde consta que iguais doentes têm melhorado.” Popularmente, tais águas eram chamadas de "águas do monge", assunto que já tratei aquiaqui e aqui.

Em resposta, o governo sul-rio-grandense (cargo ocupado por outro militar) argumentou que não havia comprovação que as águas curassem elefantíase ou qualquer doença, portanto, não investiria recursos públicos para transporte dos índios enfermos.

O general Francisco José de Souza Soares de Andrea não queria alimentar a crença popular patrocinando o transporte de doentes à Santa Maria da Boca do Monte. Sua decisão se pautava nos pareceres científicos dos médicos que haviam negado quaisquer princípios medicinais às águas.

Aquela era uma época em que militares que ocupavam cargos públicos estavam aprendendo a ouvir a ciência.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Para quem acredita em milagre, a ciência não ajuda muito.

Em um mundo não muito distante de nós, mas em outro tempo, aconteceu um caso interessante. Milhares de pessoas passaram a se encaminhar para um local onde brotava uma água “milagrosa”, que curava todo tipo de doença. Tal água nascia de uma fonte “abençoada” que já havia operado a salvação de vários doentes, diziam os comentários. As notícias corriam céleres, de boca em boca, fazendo com que tal fonte virasse um verdadeiro centro de peregrinação. A aglomeração chamou a atenção das autoridades, dos jornalistas e dos cientistas.


Fonte de água "milagrosa", no Cerro do Botucaraí, Candelária/RS

Dois médicos, que também eram químicos, realizaram testes com essa água, concluindo que ela era unicamente potável. Porém, de pouco adiantou a propaganda do governo e dos jornais denunciando o charlatanismo e a impostura daqueles que ainda apregoavam a cura pelo uso da água, pois o povo continuou a afluir à fonte, acreditando no milagre.

Paralisias, cegueira, doenças de pele, ossos quebrados, problemas respiratórios, dores abdominais, de ouvido, de garganta, e até infertilidade feminina...tudo se curava pelo uso da dita água “santa”. Se fosse hoje, talvez também existissem alguns propagandeando que a ingestão da água curasse parasitas, vermes e vírus. Afinal, mesmo sem comprovação científica de sua eficácia, mal não faria tomar alguns goles do abençoado líquido. Ao menos era água potável.

Nota do autor: esse caso é verídico, e aconteceu em 1848 nos Cerros do Campestre (Santa Maria) e do Botucaraí (hoje no município de Candelária). Era a época em que a ciência iniciava sua luta para desacreditar certas crendices populares. Pelo visto a luta continua...

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Era o Monge João Maria COMUNISTA?



Na época da passagem do monge italiano João Maria de Agostini pelo Brasil (meados do século XIX), o termo "comunista" já era utilizado para definir as ideias e ações de uma pessoa, geralmente para ofender, macular sua imagem. Na boca dos brasileiros "de bem" daquele tempo, ser "comunista" era ir contra os valores, as normas e as instituições de um Estado Monárquico assentado no tripé escravidão, latifúndio e monocultura. Pois bem, João Maria de Agostini foi acusado não só de ser "comunista", mas de defender certas liberdades para as populações pobres, algo intolerável para autoridades e sociedade civil.

A prisão do monge no Cerro do Botucaraí (município de Candelária, no Rio Grande do Sul), em outubro de 1848, se deu sob argumentos de que ele estaria "incutindo o fanatismo e a superstição no seio da população livre, repassando em suas prédicas um tal espírito vertiginoso de liberdade e igualdade, de fraternidade e comunismo, algo que de forma alguma poderia se coadunar com o estado e instituições do país", argumentava o cronista de um dos jornais mais lidos da época, o Diário do Rio Grande (18 de novembro de 1848). Teria razão o jornalista? Ou não seria mais uma das tantas reportagens sensacionalistas que buscavam explicar a presença do já afamado monge no Rio Grande do Sul?



Talvez os jornalistas tivessem razão. E explico por quê. 

Agostini estava no Cerro do Botucaraí quando foi detido, mas se dirigia para o Cerro do Campestre (próximo a Santa Maria) para lá deixar um documento por ele escrito. O monge entendeu ser uma necessidade ordenar a grande aglomeração que acontecia no Cerro do Campestre, multidão que lá estava em busca de cura para diversas doenças em uma fonte de água com supostos "poderes milagrosos". Segundo crença quase que geral, o próprio monge havia tornado aquelas águas milagrosas.
Portanto, vendo-se responsável por aquela "balbúrdia", tratou de redigir um documento para criar uma "confraria" e instituir uma devoção católica, no caso a de Santo Antão Abade. O documento intitulado "Aos do Campestre", destinado para os moradores locais, ditava regras de uma verdadeira "irmandade" leiga, sem a presença da Igreja e, o que foi pior, sem autorização do Estado para funcionar. Mas havia um "ingrediente" verdadeiramente explosivo em certo trecho do documento: o povo reunido poderia escolher, POR VOTO DIRETO, os zeladores e o procurador de Santo Antão Abade.

Festa de Santo Antão Abade, Cerro do Campestre (Santa Maria/RS). Foto de 1914.

Sim, caros leitores e leitoras! Voto direto, sufrágio universal! Ao tomar contato com o documento, o presidente da Província do Rio Grande do Sul, o general José Francisco de Souza Soares de Andreia, não pensou duas vezes: ordenou a detenção do monge "pelo extravagante papel que está representando". E os jornais não deixaram por menos: "O monge João Maria Agostini, a quem se deve a descoberta das águas santas, foi preso (...). Parece que a polícia tomou conhecimento de um fato que afetava a tranquilidade pública, e no qual figurava aquele monge" (Diário do Rio Grande, 11 de novembro de 1848).

Lembremos que fazia somente três anos que a Revolução Farroupilha havia terminado, e ainda era viva na lembrança dos jornalistas e autoridades imperiais a presença e atuação de indivíduos como os italianos Giuseppe Garibaldi, Luigi Rossetti e Tito Livio Zambeccari. Do mesmo modo, talvez os jornalistas estivessem impressionados (e temerosos) com o recém-lançado Manifesto Comunista dos ainda desconhecidos Karl Marx e Friedrich Engels, na Europa, em fevereiro de 1848. Agostini, imerso em seus próprios problemas e dilemas no Brasil, alheio ao tal Manifesto (talvez nunca tenha sabido do mesmo), certamente devia nutrir alguma simpatia por tais ideais - se bem que seu posicionamento era mais religioso do que político, muito embora tais instâncias nem sempre podiam ser separadas.


Monge João Maria de Agostini, o "comunista", será preso outras vezes em suas andanças pelo continente americano, sempre pelo mesmo motivo: subversão de valores, contestação das autoridades constituídas e por desempenhar "extravagante papel" junto ao povo.

Ps: Lembrando que o documentário "A Maravilha do Século", que reconstrói o percurso do monge pelas Américas, será exibido em breve para alunos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e durante um evento na Universidade Federal de Santa Maria.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Relatos de uma experiência antropológica
Cerro Chalpón, Motupe, Peru, agosto de 2018

Quase chegando ao topo da montanha, me deparei com a fonte de água que brota do meio da grande rocha. Enquanto esperávamos a vez para encher nossas garrafinhas com o precioso líquido, acercou-se uma jovem peruana perguntando de onde vínhamos. Tomei a frente e respondi que éramos do Brasil e estávamos realizando um documentário a respeito das devoções iniciadas pelo eremita "Juan Agustín Abad" (como é conhecido no Peru o nosso monge João Maria). Mostrando-se muito interessada, a jovem questionou se era verdade que os ossos do eremita estavam em Roma e que ele havia sido canonizado. Por milésimos de segundos hesitei em responder.

Pequena aglomeração para encher as garrafas com a água da fonte do eremita.

Crianças enchendo garrafas. Naquele dia, a água estava escassa devido à alta demanda. A aparência um pouco arenosa não impediu que muitos saíssem de lá com vários litros da "água benta".

Aviso aos peregrinos.
Sem sombra de dúvidas, a festa da Santíssima Cruz de Motupe é a mais concorrida devoção das Américas que ainda existe e que tem ligação com o monge/eremita João Maria de Agostini. Comemorada em agosto (do dia primeiro até o dia 5), talvez seja a única festa em homenagem a Santa Cruz fora do mês de setembro. São milhares de pessoas que circulam pela região durante os dias do evento. Vendedores ambulantes de todo tipo, que oferecem desde produtos religiosos até poções extraídas de animais como iguanas, cobras e jacarés, são encontrados nas escadarias que levam ao topo da montanha. Esses "curandeiros" têm a aprovação popular, e a região norte do Peru é muito conhecida pela presença deles.

Restaurante, olhares, o Menu e a carne secando

Objetos religiosos à venda

Muitas velas para a Santa Cruz de Motupe
A cruz começa a descer da montanha no dia primeiro de agosto, com muita reza e concorrência das pessoas que querem auxiliar no descenso do "santo madero". Até chegar à igreja matriz de Motupe, no dia 5, ela irá percorrer vários quilômetros e irá parar em algumas capelas e vilas no caminho. O clima de deserto se sente na pele: quente durante o dia, muito frio à noite. Além disso, chama a atenção a pobreza das casas que estão no caminho da Santa Cruz. Parecia que estávamos no sertão de Canudos, em pleno Arraial de Antônio Conselheiro.

Moto-táxi no deserto aos pés do Cerro Chalpón.
O mais interessante é que Agostini construiu esta cruz em 1841, mas ela só se tornou centro de devoção em 1868. Durante esse intervalo de tempo, ela ficou escondida no alto do Cerro Chalpón, sem quem ninguém a encontrasse. Precisou o Peru ser sacudido por um grave terremoto, em 13 de agosto de 1868, deixando muitos mortos e feridos, para que os moradores de Motupe lembrassem da obra do eremita e de seu recado antes de desaparecer. Segundo tradição oral que se perpetuou, o "padre santo" havia dito que quando o "fim do mundo" estivesse próximo, as pessoas de Motupe poderiam se valer da Santa Cruz para protegê-las do mal. Para isso, deveriam encontrá-la e levá-la para o centro da vila, pois, uma vez ela estando ali, nada aconteceria aos moradores do povoado.

Mesmo envolvido por placas de metal, é possível tocar no "santo madero".
Em 1869, as previsões catastróficas de um astrólogo alemão (chamado Rodolfo Falb) chegaram ao Peru. Dizia ele que tanto o Peru, quanto o Equador e o México, seriam abalados por mais tremores de terra. Temerosos com o forte terremoto de um ano antes, os peruanos abandonaram casas, esvaziaram cidades, deixaram seus negócios para trás e foram buscar abrigo em lugares ermos. O vaticínio do astrólogo alemão não se confirmou, ou antes, pequenos tremores de fato aconteceram, mas de baixa intensidade e sem vítimas. No norte, mais precisamente em Motupe, os moradores acreditaram que a Santa Cruz feita pelo eremita havia protegido a todos.

Santa Cruz segue seu caminho para a cidade de Motupe.
Inicialmente tímida, a festa passou por distintas fases até se tornar uma das mais concorridas de todo o país. Em janeiro de 2018, o papa Francisco, em visita ao Peru, abençoou a Santa Cruz de Motupe.

Para mais informações a respeito da visita do papa ao Peru e seu encontro com a Santa Cruz, click AQUI ou AQUI

Concluindo, meu espírito de historiador falou mais alto. Respondi que não, e não pude deixar de notar certo desapontamento da jovem peruana.