sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Era o Monge João Maria COMUNISTA?



Na época da passagem do monge italiano João Maria de Agostini pelo Brasil (meados do século XIX), o termo "comunista" já era utilizado para definir as ideias e ações de uma pessoa, geralmente para ofender, macular sua imagem. Na boca dos brasileiros "de bem" daquele tempo, ser "comunista" era ir contra os valores, as normas e as instituições de um Estado Monárquico assentado no tripé escravidão, latifúndio e monocultura. Pois bem, João Maria de Agostini foi acusado não só de ser "comunista", mas de defender certas liberdades para as populações pobres, algo intolerável para autoridades e sociedade civil.

A prisão do monge no Cerro do Botucaraí (município de Candelária, no Rio Grande do Sul), em outubro de 1848, se deu sob argumentos de que ele estaria "incutindo o fanatismo e a superstição no seio da população livre, repassando em suas prédicas um tal espírito vertiginoso de liberdade e igualdade, de fraternidade e comunismo, algo que de forma alguma poderia se coadunar com o estado e instituições do país", argumentava o cronista de um dos jornais mais lidos da época, o Diário do Rio Grande (18 de novembro de 1848). Teria razão o jornalista? Ou não seria mais uma das tantas reportagens sensacionalistas que buscavam explicar a presença do já afamado monge no Rio Grande do Sul?



Talvez os jornalistas tivessem razão. E explico por quê. 

Agostini estava no Cerro do Botucaraí quando foi detido, mas se dirigia para o Cerro do Campestre (próximo a Santa Maria) para lá deixar um documento por ele escrito. O monge entendeu ser uma necessidade ordenar a grande aglomeração que acontecia no Cerro do Campestre, multidão que lá estava em busca de cura para diversas doenças em uma fonte de água com supostos "poderes milagrosos". Segundo crença quase que geral, o próprio monge havia tornado aquelas águas milagrosas.
Portanto, vendo-se responsável por aquela "balbúrdia", tratou de redigir um documento para criar uma "confraria" e instituir uma devoção católica, no caso a de Santo Antão Abade. O documento intitulado "Aos do Campestre", destinado para os moradores locais, ditava regras de uma verdadeira "irmandade" leiga, sem a presença da Igreja e, o que foi pior, sem autorização do Estado para funcionar. Mas havia um "ingrediente" verdadeiramente explosivo em certo trecho do documento: o povo reunido poderia escolher, POR VOTO DIRETO, os zeladores e o procurador de Santo Antão Abade.

Festa de Santo Antão Abade, Cerro do Campestre (Santa Maria/RS). Foto de 1914.

Sim, caros leitores e leitoras! Voto direto, sufrágio universal! Ao tomar contato com o documento, o presidente da Província do Rio Grande do Sul, o general José Francisco de Souza Soares de Andreia, não pensou duas vezes: ordenou a detenção do monge "pelo extravagante papel que está representando". E os jornais não deixaram por menos: "O monge João Maria Agostini, a quem se deve a descoberta das águas santas, foi preso (...). Parece que a polícia tomou conhecimento de um fato que afetava a tranquilidade pública, e no qual figurava aquele monge" (Diário do Rio Grande, 11 de novembro de 1848).

Lembremos que fazia somente três anos que a Revolução Farroupilha havia terminado, e ainda era viva na lembrança dos jornalistas e autoridades imperiais a presença e atuação de indivíduos como os italianos Giuseppe Garibaldi, Luigi Rossetti e Tito Livio Zambeccari. Do mesmo modo, talvez os jornalistas estivessem impressionados (e temerosos) com o recém-lançado Manifesto Comunista dos ainda desconhecidos Karl Marx e Friedrich Engels, na Europa, em fevereiro de 1848. Agostini, imerso em seus próprios problemas e dilemas no Brasil, alheio ao tal Manifesto (talvez nunca tenha sabido do mesmo), certamente devia nutrir alguma simpatia por tais ideais - se bem que seu posicionamento era mais religioso do que político, muito embora tais instâncias nem sempre podiam ser separadas.


Monge João Maria de Agostini, o "comunista", será preso outras vezes em suas andanças pelo continente americano, sempre pelo mesmo motivo: subversão de valores, contestação das autoridades constituídas e por desempenhar "extravagante papel" junto ao povo.

Ps: Lembrando que o documentário "A Maravilha do Século", que reconstrói o percurso do monge pelas Américas, será exibido em breve para alunos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e durante um evento na Universidade Federal de Santa Maria.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Relatos de uma experiência antropológica
Cerro Chalpón, Motupe, Peru, agosto de 2018

Quase chegando ao topo da montanha, me deparei com a fonte de água que brota do meio da grande rocha. Enquanto esperávamos a vez para encher nossas garrafinhas com o precioso líquido, acercou-se uma jovem peruana perguntando de onde vínhamos. Tomei a frente e respondi que éramos do Brasil e estávamos realizando um documentário a respeito das devoções iniciadas pelo eremita "Juan Agustín Abad" (como é conhecido no Peru o nosso monge João Maria). Mostrando-se muito interessada, a jovem questionou se era verdade que os ossos do eremita estavam em Roma e que ele havia sido canonizado. Por milésimos de segundos hesitei em responder.

Pequena aglomeração para encher as garrafas com a água da fonte do eremita.

Crianças enchendo garrafas. Naquele dia, a água estava escassa devido à alta demanda. A aparência um pouco arenosa não impediu que muitos saíssem de lá com vários litros da "água benta".

Aviso aos peregrinos.
Sem sombra de dúvidas, a festa da Santíssima Cruz de Motupe é a mais concorrida devoção das Américas que ainda existe e que tem ligação com o monge/eremita João Maria de Agostini. Comemorada em agosto (do dia primeiro até o dia 5), talvez seja a única festa em homenagem a Santa Cruz fora do mês de setembro. São milhares de pessoas que circulam pela região durante os dias do evento. Vendedores ambulantes de todo tipo, que oferecem desde produtos religiosos até poções extraídas de animais como iguanas, cobras e jacarés, são encontrados nas escadarias que levam ao topo da montanha. Esses "curandeiros" têm a aprovação popular, e a região norte do Peru é muito conhecida pela presença deles.

Restaurante, olhares, o Menu e a carne secando

Objetos religiosos à venda

Muitas velas para a Santa Cruz de Motupe
A cruz começa a descer da montanha no dia primeiro de agosto, com muita reza e concorrência das pessoas que querem auxiliar no descenso do "santo madero". Até chegar à igreja matriz de Motupe, no dia 5, ela irá percorrer vários quilômetros e irá parar em algumas capelas e vilas no caminho. O clima de deserto se sente na pele: quente durante o dia, muito frio à noite. Além disso, chama a atenção a pobreza das casas que estão no caminho da Santa Cruz. Parecia que estávamos no sertão de Canudos, em pleno Arraial de Antônio Conselheiro.

Moto-táxi no deserto aos pés do Cerro Chalpón.
O mais interessante é que Agostini construiu esta cruz em 1841, mas ela só se tornou centro de devoção em 1868. Durante esse intervalo de tempo, ela ficou escondida no alto do Cerro Chalpón, sem quem ninguém a encontrasse. Precisou o Peru ser sacudido por um grave terremoto, em 13 de agosto de 1868, deixando muitos mortos e feridos, para que os moradores de Motupe lembrassem da obra do eremita e de seu recado antes de desaparecer. Segundo tradição oral que se perpetuou, o "padre santo" havia dito que quando o "fim do mundo" estivesse próximo, as pessoas de Motupe poderiam se valer da Santa Cruz para protegê-las do mal. Para isso, deveriam encontrá-la e levá-la para o centro da vila, pois, uma vez ela estando ali, nada aconteceria aos moradores do povoado.

Mesmo envolvido por placas de metal, é possível tocar no "santo madero".
Em 1869, as previsões catastróficas de um astrólogo alemão (chamado Rodolfo Falb) chegaram ao Peru. Dizia ele que tanto o Peru, quanto o Equador e o México, seriam abalados por mais tremores de terra. Temerosos com o forte terremoto de um ano antes, os peruanos abandonaram casas, esvaziaram cidades, deixaram seus negócios para trás e foram buscar abrigo em lugares ermos. O vaticínio do astrólogo alemão não se confirmou, ou antes, pequenos tremores de fato aconteceram, mas de baixa intensidade e sem vítimas. No norte, mais precisamente em Motupe, os moradores acreditaram que a Santa Cruz feita pelo eremita havia protegido a todos.

Santa Cruz segue seu caminho para a cidade de Motupe.
Inicialmente tímida, a festa passou por distintas fases até se tornar uma das mais concorridas de todo o país. Em janeiro de 2018, o papa Francisco, em visita ao Peru, abençoou a Santa Cruz de Motupe.

Para mais informações a respeito da visita do papa ao Peru e seu encontro com a Santa Cruz, click AQUI ou AQUI

Concluindo, meu espírito de historiador falou mais alto. Respondi que não, e não pude deixar de notar certo desapontamento da jovem peruana.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

João Maria de Agostini não foi um homem comum. Sozinho, partiu de uma Europa assolada por guerras, fome e mortes. A Itália estava iniciando o processo de Unificação e muitos sentiam os efeitos disso. Escolheu a América (o continente) para levar uma vida de solidão e penitência. Mas quem diria que, apesar do desejo em imitar a vida de Santo Antônio Abade (o primeiro eremita cristão e que viveu no Egito nos primeiros séculos do cristianismo), tornou-se um dos maiores missionários católicos que a América conheceu?
Foto tirada em Havana, Cuba, em 1861.
Exímio orador, pregava o Evangelho de modo agressivo quando necessário, e não poucas vezes foi escorraçado de igrejas por atacar quem o ouvia. Como típico europeu de seu tempo, o comportamento arrogante, superior diante dos povos americanos, não era bem-visto por alguns. Mas, apesar disso, deixou marcas profundas e duradouras entre os populares: construiu vias-sacras, instituiu devoções, curou doentes a partir de seu conhecimento de "cientista natural", aconselhou, repartiu o pouco que conseguiu, fez-se santo! Sua aparência se enquadrava ao estilo dos santos bíblicos: barbas longas, cajado de peregrino, hábito religioso, objetos sacros e comportamento exemplar. Um "iluminado" que, além de tudo, falava vários idiomas (latim, dialeto do Piemonte, francês, espanhol e português). Peregrinou por mais de 30 anos no continente, e faleceu possivelmente pelas mãos daqueles que ele mais deu atenção durante esse tempo: os índios (Apaches que estavam em guerra contra o homem branco que tomava seu território no estado do Novo México).

Encontro necessário e muito esperado

Lápide de Juan Maria de Agostini,
o "Eremita do Novo México" (Mesilla, EUA).
Sabe-se que um livro não seria, e não é, suficiente para dar conta de toda essa história. Seria preciso muito mais: um documentário, filme, série, enfim, algo que pudesse divulgar minimamente o que fez este bravo e controverso homem. Por isso estamos (a equipe da Plural Filmes e eu), desde o ano passado, percorrendo inúmeros lugares por onde Agostini passou e deixou alguma devoção continuada por seus devotos/admiradores: no Brasil, nos Estados Unidos, na Argentina, no Peru e no México. Documentário longa-metragem que tentará contar as crenças, lendas e histórias a respeito do monge/eremita, mas, acima de tudo, aproximar lugares e pessoas.

Conjunto rochoso onde está "La Cueva", local onde Agostini morou em Mesilla entre 1867 e 1869. A poucos metros dali seu corpo foi encontrado, morto, com perfurações nas costas. 

Equipe de filmagem em "La Cueva" (Mesilla, EUA)

Entardecer, "La Cueva".
Montanha do Eremita, norte do Novo México (EUA)
No alto da Montanha do Eremita (2.100 m de altitude).

Pedras durante a subida da montanha
Trilhas na montanha
Cerro Chalpón, norte do Peru.
Santa Cruz de Motupe. Obra feita por Agostini em 1841, venerada até hoje pelos peruanos
Ponto de parada da Santa Cruz, ainda no meio da montanha.
Praça Central, Motupe. Milhares aguardam a chegada da Santa Cruz.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A Maravilha do nosso século



A fotografia já era conhecida, sendo publicada em meu livro na página 384. Contudo, a foto acima está em melhor definição, de corpo inteiro. Foi tirada em Havana, Cuba, no ano de 1861, após um período conturbado vivido no México, de onde Agostini fora deportado. O fotógrafo nomeou o retrato como "La Maravilla de Nuestro Siglo", vendendo-a como souvenir para os admiradores do peregrino. A Tau franciscana, no lado esquerdo do manto, demonstra de onde vinha a espiritualidade do eremita. A fotografia foi preparada em estúdio.
Fonte: http://pogphotoarchives.tumblr.com/image/79369211167

quarta-feira, 17 de junho de 2015

A FAMÍLIA AGOSTINI NA AMÉRICA


Recentemente, ao apresentar meu livro em um evento em Caxias do Sul, alguns historiadores italianos ficaram surpresos ao me escutar. Esse interesse era para saber se o eremita João Maria de Agostini, personagem de meu livro, era parente de um missionário religioso que explorara a América do Sul no início do século XX: o nome desse italiano era Alberto Maria de Agostini, coincidentemente originário da mesma região que João Maria. Além disso, Alberto Maria, que era Salesiano, tinha por irmão (mais velho) Giovanni de Agostini, o fundador de uma das mais antigas casas editoriais da Itália, hoje uma multinacional bastante conhecida.

Alberto Maria de Agostini, nascido em 2 de novembro de 1883 na província de Novara (Piemonte), veio para a Argentina na década de 1920 para trabalhar como missionário religioso. Atuou, principalmente, na região da Patagônia chilena e argentina, sendo reverenciado e lembrado até hoje. Foi explorador, geógrafo, fotógrafo e cineasta, realizando várias filmagens de povos indígenas da Terra do Fogo. Faleceu em Turim em dezembro de 1960.

Resta, agora, investigar qual era o grau de parentesco entre o "famoso" monge João Maria, ou O Eremita das Américas, com esse outro missionário. Por serem da mesma região, mesmo sobrenome e mesma índole religiosa, é muito provável que exista, sim, parentesco. 

Alberto Maria de Agostini ao lado de um índio na Patagônia argentina (consultar em: http://www.viaggipolari.it/it/)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

OS MANUSCRITOS DO EREMITA DAS AMÉRICAS

Ao final de sua vida, por volta de 1864, quando estava morando no alto do Cerro Tecolote, norte do Novo México, o eremita italiano João Maria de Agostini tomou a decisão de contar suas experiências para alguém de confiança, ditando, de memória, os principais momentos da extensa jornada pelas Américas. Totalizando pouco mais de cem páginas, estas anotações deveriam servir para que a sua história fosse divulgada às gerações vindouras e não caísse no esquecimento. Vaidade do eremita? Certamente, mas não era incomum missionários escreverem sobre suas vidas relatando feitos extraordinários para terem seus nomes para sempre lembrados. Contudo, os manuscritos tiveram um percurso diferente daquele pensado pelo eremita, não alcançando a quantidade de leitores que o autor tinha em mente. Por muitas décadas os papéis ficaram guardados como relíquia por uma família do Novo México; depois, passaram de mão em mão até serem declarados desaparecidos por pesquisadores da atualidade. Felizmente, há uma cópia feita em 1925, que utilizo quase em sua totalidade no último capítulo do livro: O EREMITA DAS AMÉRICAS



Editora da UFSM, 2014. Lançamento: 30 de abril de 2014, na Feira do Livro de Santa Maria
Passados exatos 145 anos da morte do eremita João Maria de Agostini - fato ocorrido em 17 de abril de 1869, nos longínquos desertos do Novo México -, quero prestar essa singela homenagem a quem considero um admirável sujeito. Se os manuscritos estão momentaneamente desaparecidos, aí está o livro para cumprir com o objetivo do autor morto há um século e meio.

PS: Ok, eu sei que o livro e os manuscritos têm funções diferentes, destinados a públicos distintos, visando atender demandas completamente opostas. Mas não poderia deixar de aproveitar o momento.


quarta-feira, 17 de abril de 2013

1869-2013: 144 ANOS DO MARTÍRIO DO EREMITA


Na cidade de Santa Fé, no Novo México (EUA), o jornal The Rio Grande Republican, do dia 30 de junho de 1869, publicava a seguinte notícia: “Índios cometem depredações perto da vila de Las Cruces”, acrescentando a nota: “Abril, 17, eremita italiano é assassinado nas Montanhas dos Órgãos, no condado de Dona Ana”. Investigações e prisões foram feitas, mas o culpado não foi encontrado. O assassinato de Juan Maria de Agostini, o eremita italiano, fez parte de uma lista de crimes jamais solucionados do Condado de Dona Ana, sul do Novo México.

Verdadeiro drama de “fé, romance, coragem, caridade e martírio da vida de um eremita,” a morte do italiano causou grande comoção entre os moradores do sul do Novo México. O corpo de Juan Maria de Agostini foi enterrado no San Albino Cemetery, em Mesilla, onde se encontra até hoje ao lado de jazigos que guardam os restos mortais de pioneiros que desbravaram a região no século XIX. Seus admiradores escolheram um epitáfio simples, escrito em espanhol, que resume perfeitamente o que foi a vida de um homem que dedicou quase toda sua existência às causas de Deus: “Juan Maria Agostini - Justiniani, eremita do Velho e do Novo Mundo. Morreu no dia 17 de abril de 1869, aos 69 anos de idade, dos quais 49 anos como eremita.” A lápide original foi substituída em 1949, trocando-se o epitáfio.


 "Quero servir a Deus nos mais terríveis desertos do mundo até o dia de minha morte" - assim declarou Agostini ao se tornar eremita, ainda na Itália, em 1827. A promessa foi cumprida.